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Brasil x Brasil

O jogo de abertura do Campeonato Mundial pode ser considerado uma metáfora do Brasil que, talvez por nunca ter tido uma guerra de verdade, é o país do desperdício.  Sem perceber, Marcelo marcou um gol para a Croácia, ou seja,  começamos com um gol contra nós mesmos. Pensei na Copa de 1950, da qual data o futebol como paixão nacional e que nós perdemos.  Me lembrei do frango de Barbosa e do que Nelson Rodrigues escreveu: “O brasileiro já esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da gripe espanhola… Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é do chamado ‘frango do Barbosa … Qualquer um com esse frango estaria morto e enterrado com o seguinte epitáfio: ‘Aqui jaz fulano, assassinado por um frango.’”  Marcelo não será assassinado porque nós ganhamos o jogo. 

Antes de Neymar emplacar um primeiro gol, a bola rolou um bom tempo  e, de tão ansiosa, a torcida ficou em silêncio. Neymar marcou e o jogo prosseguiu, mas o Brasil perigava. Os croatas são bons jogadores e a defesa deles  é ótima, contrariamente à nossa. 

No segundo tempo, quem desempatou o jogo foi o árbitro, marcando um pênalti contra a Croácia, “um pênalti imaginário”,  segundo os locutores da televisão francesa. Os croatas  se revoltaram contra o árbitro  e  foram protestar. Tive a fantasia de que ele poderia ser agredido e  fiquei com medo.  Me veio à cabeça o mensalão e a capacidade que nós temos de corromper  até a sombra. Tive vergonha da situação embora soubesse que, por sediar a Copa, o Brasil não podia perder o jogo de abertura do campeonato. Considerando todas as manifestações contrárias à Copa, o tamanho do desastre seria incomensurável e o campeonato poderia simplesmente não acontecer.  Disse para mim mesma que  não queria estar na posição do árbitro.  

Graças ao pênalti, Neymar marcou um segundo gol, mas  a vitória ainda não era certa porque a Seleção estava despreparada –  defesa fraca e jogadas sem planejamento. A Seleção refletia o Brasil, que não prima pelo espírito coletivo. Acabamos ganhando o jogo porque Deus quis. Quando dei por mim, Oscar havia marcado o terceiro gol. 

Mas valeu. Por Neymar, um dos jogadores mais acrobáticos  que já tivemos, mais dispostos aos ajustes práticos necessários a um desempenho eficiente, capaz inclusive de esquecer que o objetivo do jogo é marcar gols.  Sua melhor jogada, aliás, foi uma em que ele não marcou o gol, porém  saltou  tão alto e se manteve por tanto tempo na horizontal que  o mundo inteiro viu  novamente um jogador  brasileiro capaz de superar os limites do possível. O mito continua.

 Por Betty Milan

* Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de O país da bola, entre outros.
** Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo
 com o título “O mito continua”.

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