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Enhanced Games e a crise ética no esporte moderno


Enhanced Games e a crise ética no esporte moderno

*Por João Antonio de Albuquerque e Souza, presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD)

Os Enhanced Games, eventos esportivos idealizados pelo empresário australiano Aaron D’Souza, propõem uma visão controversa para o esporte, a liberação irrestrita de substâncias dopantes em nome de performances extremas, recordes impressionantes e lucros elevados. Apresentada como uma evolução do esporte, a iniciativa promete um espetáculo de feitos sobre-humanos, mas, na prática, ameaça os pilares éticos, a saúde dos atletas e o valor intrínseco das competições.

Longe de representar inovação, os Enhanced Games promovem uma desregulação perigosa, que transforma o corpo humano em um campo de experimentos e compromete a essência do esporte como símbolo de mérito, superação e integridade. Em um contexto em que casos de doping, evidenciam os riscos à carreira e à credibilidade, é fundamental questionar até que ponto a busca por performance a qualquer custo justifica o abandono dos valores que fazem do esporte um patrimônio humano.

O evento ignora décadas de avanços na construção de um ambiente esportivo seguro, justo e baseado no mérito real. Ao renunciar aos controles antidopagem, a modalidade abandona o princípio da igualdade de condições e mergulham em uma lógica de performance a qualquer custo, uma corrida armamentista biológica que trata o corpo humano como um laboratório de testes.

A recente divulgação de que o nadador grego Kristian Gkolomeev teria superado o recorde mundial de Cesar Cielo nos 50 metros nado livre sintetiza o paradoxo. Ainda que o tempo anunciado seja mais rápido, esse “recorde” jamais será reconhecido, porque recorde, no esporte, é mais do que um número cravado no cronômetro. É o resultado de esforço, ética e superação dentro de regras claras.

Quando se elimina a régua da integridade, todo resultado torna-se artificial, e, portanto, irrelevante. Essa artificialidade compromete não apenas o valor simbólico das marcas, mas também a própria lógica do esporte como ferramenta de educação, exemplo e transformação social. Atletas, especialmente os mais jovens, precisam acreditar que é possível chegar ao topo com talento, treinamento e dedicação. Quando a mensagem transmitida é a de que o uso de substâncias potencialmente letais é necessário para vencer, o esporte deixa de inspirar e passa a corromper.

Em 2023, o meia francês Paul Pogba, campeão mundial, foi suspenso por 18 meses após testar positivo para testosterona sintética, substância proibida pela Agência Mundial Antidoping (WADA). O exame, feito após a partida entre Udinese e Juventus, mesmo sem ele ter entrado em campo, teve contraprova confirmada. O caso reforça a importância da fiscalização antidoping na proteção da saúde dos atletas e na credibilidade do esporte.

Não por acaso, instituições sérias já se manifestaram com firmeza. A USADA (Agência Antidopagem dos Estados Unidos) chamou a competição de ameaça à juventude esportiva mundial, e a World Aquatics, por sua vez, endureceu sua regulamentação e determinou que qualquer envolvimento com esse evento tornará o indivíduo inelegível para funções e competições em seu sistema. A resposta das entidades é proporcional ao risco: quem relativiza a dopagem mina as fundações éticas do esporte.

A alegação de que essa iniciativa seria uma vitrine para avanços científicos ignora um fator central: o corpo humano não é um protótipo de laboratório. Submeter atletas a substâncias experimentais com foco exclusivo na performance, sem considerar impactos de médio e longo prazo, é um flerte deliberado com o colapso físico, mental e até moral. O histórico de danos causados por substâncias dopantes está fartamente documentado, e insistir nesse caminho é reincidir num erro que o esporte moderno levou décadas para começar a corrigir.

Recordes mundiais não são construídos em poucos meses com o auxílio de seringas e moléculas; eles são forjados ao longo de anos de disciplina rigorosa, privação constante, técnica apurada e resiliência inabalável — esse é o verdadeiro aprimoramento. Qualquer atalho que ignora esse processo não representa avanço, mas sim fraude, e vai além disso: constitui a negação de tudo o que torna o esporte um patrimônio humano.

Portanto, a ideia de eliminar a antidopagem é, em última análise, uma tentativa de suprimir o próprio esporte, pois não existe mérito onde não há limites, nem vitória verdadeira sem o risco real e o enfrentamento legítimo. Nos Enhanced Games, resta apenas o espetáculo do excesso e a ilusão perigosa de que a performance isolada seja suficiente para criar heróis.

*João Antonio de Albuquerque e Souza é atleta olímpico, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito e Justiça Social pela UFRGS. Atualmente, é Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) e sócio fundador do escritório Albuquerque e Souza. Com expertise em Direito Civil, Trabalhista e Desportivo, sua atuação abrange temas como contratos e responsabilidade civil.

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