FUTEBOL: ARTE E CIÊNCIA - ÊNIO ANDRADE III - SóEsporte
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FUTEBOL: ARTE E CIÊNCIA – ÊNIO ANDRADE III

Fala Falcão o Rei de Roma: “O Ênio era muito bom. A boleirada adorava ele”.

Paulo Roberto Falcão foi um dos gigantes da história do futebol brasileiro e mundial. É, simplesmente, o melhor jogador e o atleta símbolo de dois clubes de grande importância no planeta: Internacional de Porto Alegre e Roma da Itália. Pelo Inter, Falcão foi três vezes campeão brasileiro, em 1975, 1976 e 1979, além de uma penca de títulos gaúchos.

Na Itália, o impacto de seu futebol elegante e refinado fez com que ganhasse o apelido de Rei de Roma, após as conquistas da Copa da Itália em 1984 e do Campeonato Italiano da temporada 1983/84. A Roma não conquistava um título nacional desde 1941. O sucesso de Falcão na Cidade Eterna fez com que o tradicional jornal Gazzetta Dello Sport cravasse a seguinte manchete em 1983: “Falcão, tu fostes ungido como o oitavo rei de Roma”.

De volta ao Brasil em 1985, Falcão jogou pelo São Paulo, antes de encerrar a carreira de atleta. Também foi treinador da seleção brasileira e do selecionado japonês, antes de atuar como comentarista de televisão, rádio e colunista de jornal.

Embora tenha trabalhado apenas dois anos sob o comando de Ênio Andrade, Falcão não reluta em apontar o treinador como um dos três que mais contribuíram para o desenvolvimento de sua carreira. Em 1979 Falcão liderou o time do Internacional, treinado por Ênio Andrade, na conquista invicta do Campeonato Brasileiro. Em 1980, o Inter foi vice-campeão da Libertadores e semifinalista do Campeonato Brasileiro.

Nessa entrevista Falcão revela detalhes do profundo conhecimento futebolístico de Ênio Andrade e do relacionamento de pai e filho que tinha com esse fantástico treinador de futebol brasileiro. Além de divertidas histórias de bastidores.

Quantas vezes você, como jogador, trabalhou sob o comando de Ênio Andrade?

Só trabalhei com ele no Inter. O Ênio chegou ao Inter no segundo semestre de 1979, com o Gilberto Tim, preparador físico.

O Inter tinha ido muito mal no Campeonato Gaúcho, por uma série de motivos. Eu só pude jogar uma partida do octogonal decisivo, estava atuando também pela Seleção Brasileira  e outros jogadores tiveram problemas de contusão. Ele assumiu a partida contra o Figueirense. O Ênio tinha muito conhecimento de futebol e uma linguagem fácil de ser assimilada pelo atleta. Conhecia muito profundamente a “boleirada”, mas não tinha muito uma relação de “boleirão” com os jogadores (boleiro) é o genérico do jogador de futebol. Quando um atleta se refere a outro como boleiro, quer dizer que ele carrega mais os vícios do que as virtudes da profissão, as manias, os trejeitos etc.).

O Ênio era extremamente carismático. O cara soltava um palavrão perto dele, e ele, que raramente flava palavrões, respondia: “A boleirada” adorava ele.

Como ele era no trabalho do dia a dia, na questão tática?

Ele enxergava muito o futebol. Eu vivi uma história com ele que mostra muito bem isso. Teve uma época em que o Internacional jamais ganhava do São Paulo gaúcho (time da cidade de Rio Grande, onde está localizado o principal porto gaúcho). Fosse em Rio Grande ou na Beira Rio. O São Paulo tinha um time muito bom, com jogadores como o Toquinho, que depois jogou na Portuguesa, em São Paulo e o Valdir, que foi campeão brasileiro com o Inter em 1979. Foi ele quem fez o passe para um dos gols do Chico Spina, na decisão contra o Vasco, no Maracanã. Pois enfrentaríamos o São Paulo e o Valdir, que já estava com a gente, avisou ao Ênio que o técnico do São Paulo ia destacar alguém para grudar em mim quando eu passasse do meio-campo. Se eu ficasse lá atrás, ninguém me marcaria. Aí o Ênio me escalou como centroavante. “Se eles vão te esperar lá atrás, tu vais jogar nas costas deles”, argumentou. Eu fiquei lá na frente. Aquilo armou tal confusão no time do São Paulo, que eles não entenderam nada. Eu fui jogar no ataque, o Mario Sergio fez a minha função, que era de segundo homem de meio-campo, o Jair era o meia e o Bira fazia o outro atacante. Então, o que aconteceu? Um zagueiro pegava o Bira, e o outro não sabia se marcava o Jair ou se ficava em mim. Em 15 minutos de jogo eu nem tinha pegado na bola, e o Inter já estava ganhando por 2 a 0. Essa história serve para se ter uma ideia de como o Ênio conhecia futebol. O Internacional derrotou o Vasco na final do Brasileiro de 1979. Foram dois jogos: Vasco 0 a 2 Inter, no Maracanã; e Inter 2 a 1 Vasco, no Beira-Rio. Chico Spina fez os dois gols no jogo do Maracanã, do qual Falcão não participou.

E qual era o estilo dele a beira do gramado? Falava muito: Gritava?

Ele não berrava com os jogadores dentro de campo, o qual, aliás, eu acho que não adianta nada. Mas tinha uma capacidade de leitura do jogo impressionante. Ele resolvia tudo no intervalo. Era um cara muito afável e perspicaz. Ele entendia muito bem as situações em que tinha de entrar de sola e as outras em que era preciso matar no peito com categoria.

A imprensa o respeitava muito, de um jeito raro de se ver no futebol. O Ênio talvez dissesse as mesmas coisas que profissionais da época e de hoje diriam, mas sem aquele tom arrogante, pernóstico, sem ficar bravo. Às vezes perguntavam pra ele se o time seria mais defensivo quando o adversário era um time forte. Ele respondia fazendo brincadeira: “Que defensivo o quê! Tem que ser equilibrado”. Não era uma resposta que agredia, e todos gostavam dele por isso.

Taticamente, o trabalho de Ênio Andrade ficou marcado por adotar o 4:3:3 (quatro homens de defesa, três no meio-campo e três atacantes)?

Ele tinha uma coisa de jogar no 4:3:3, mas pelo menos no Inter, era disfarçado, pois o Mario Sérgio fazia o quarto homem de meio-campo. Nos jogos mais difíceis, jogávamos o Batista e eu como os dois volantes à frente da área. Eu saía mais. O Mário fazia o quarto homem mais recuado. Nos jogos mais fáceis, aí o Mário Sergio ficava mais aberto e o esquema era com três atacantes de fato.

Como era a relação dele com os jogadores? Ele permitia brincadeiras?

Era um sujeito muito humano, se preocupava com os caras, mas sem ser o paizão. Ele não era de fazer muita reunião com os jogadores. Falava uma frase e se fazia entender. Não ficava em cima, não cuidava da vida particular do jogador. Ele vivia contando de um gol que fez no Campeonato Pan-Americano de 1956 (a Seleção Brasileira foi representada pela Seleção Gaúcha e conquistou o título). O Mário Sergio, que sempre sacaneava todo mundo, dizia: “Que gol que o senhor fez, seu Ênio? Tem que trazer a prova”. O Ênio prometia: “Vou trazer o LP com a gravação”. E o Mário, aí, não perdoava: “Pô, longplay (para as novas gerações, o termo longplay não deve fazer muito sentido. Mas, muito antes da era do CD e da música digital, o formato de gravação de música e áudio era um disco grande, de acetato ou vinil, chamado de longplay ou LP), não vale, seu Ênio!!!

Mesmo com jogadores como Mário Sergio, que é um grande gozador, ele nunca perdia a paciência?

O Mário Sergio também adorava provocar o Batista e usava o Ênio para isso. O Mário perguntava: “Seu Ênio, imagine um meio-campo com Batista, Falcão, Ênio Andrade e Mário Sergio. Qual seria a função tática do Batista?” O Ênio abria um sorriso e respondia: “Tirar (roubar) a bola e dá para nós, pô!”

Como era sua relação pessoal com Ênio Andrade?

Eu era muito amigo dele, sentia que ele tinha uma relação de pai e filho comigo. Ele me chamava de Bolinha, eu era o capitão do time dele. Sempre demonstrou uma preocupação sincera comigo. Em 1980, nas semifinais do Campeonato Brasileiro, contra o Atlético Mineiro, eu tive uma erisipela (infecção de pele provocada por uma bactéria), antes da segunda partida, em Porto Alegre. Estava com 40 graus de febre na hora do jogo. Tentei aquecer, coloquei a caneleira e tudo, mas não conseguia nem tocar na pele. Quando o Gilberto Tim era o preparador físico, o capitão do time é que sempre devia puxar a fila do aquecimento. Eu tentei, mas mancava, abaixava a perna e latejava muito. O Tim dizia: “Vamos lá, você tem que entrar, dar motivação pra o time”. O Ênio viu tudo aquilo e, preocupado, veio falar comigo: “Como é que tá, Bolinha? Não vai dá, né? Cuida disso”. O Tim insistia e falava: “Boniteza (ele chamava todo mundo de boniteza), tu tinhas que ter entrado! Só pra entrar em campo e assustar os caras (do Atlético)” Depois, o médico que me curou disse que se eu tivesse jogado e tomado uma pancada no local, poderia ter perdido a perna.

Quando você deixou o Inter e foi para a Itália, jogar na Roma, a amizade continuou?

A minha estreia na Roma foi num amistoso exatamente com o Inter. E logo depois a gente faria um jogo na Arábia. O Ênio veio falar comigo, ele estava preocupado em saber como eu ia me virar na Itália e disse: “Como é que tu vai ficar sozinho aqui?”

Pode-se dizer que o Ênio Andrade foi o melhor treinador que você teve?

Dizer quem foi o melhor é algo com que não concordo muito. Temos esse hábito no Brasil, mas isso é muito simplório. O Dino Sani foi o primeiro técnico que apostou em mim, em 1973, no Inter. Jogavam Carboni e Tovar, e o Dino disse para a diretoria: “Pode vender um dos dois que o Falcão faz o que os dois fazem”. O Minelli me ajudou muito porque me pôs para jogar mais a frente, como segundo volante. E o Ênio Andrade foi um cara com quem eu tive uma grande relação e me desenvolvi muito como jogador. Tive vários treinadores, mas esses três foram muito importantes para mim, me ajudaram muito.

Como foi o impacto da saída do Ênio para o Grêmio, exatamente o maior rival do Inter, em 1981?

Quando o Inter perdeu a chance de conquistar o tetracampeonato brasileiro e o título da Libertadores, em 1980, o Ênio saiu. Eu tinha tanta confiança no trabalho dele que aconteceu uma história curiosa. Eu vim da Roma passar férias em Porto Alegre e os jornalistas foram me esperar no aeroporto. Um repórter da Rádio Guaíba me perguntou: “E o Ênio Andrade no Grêmio, que é que tu achas Falcão? Eu respondi: “O Grêmio começou a ser campeão brasileiro”. Simplesmente saiu essa frase. O Grêmio foi campeão com aquele gol do Baltazar, na final contra o São Paulo, e no dia da conquista do título me telefonaram em Roma. Reproduziram a entrevista daquele dia em Porto Alegre, perguntavam com é que eu podia saber, ter certeza que ele seria campeão. Foi o que me ocorreu na hora. Eu já sabia que o Ênio era muito bom.

Eduardo Pimentel

Técnico de Futebol

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