O menino tinha só sete anos, mas corria como os maiores e brigava como poucos para estar sempre onde a bola estivesse. Não media tamanho, não media dificuldades. Aquilo era apenas um treino do segundo time do infantil do Mangueira, em São João do Nepomuceno, Minas, segundo time em que ele acabara de ganhar a condição de titular, apesar da idade. Mas treino para ele – para eles todos – era o mesmo que um jogo: havendo uma bola em campo e dois times frente a frente, nenhum dos guris fazia distinção entre uma coisa e outra.
E aquele pequenino center-half sentia que o treino – ou o jogo – estava duro. Mais que a correria, mais que a luta pela bola, começou a dar de si, por causa disso, também no jogo rijo, no jogo quase briga. Heraldo, seu irmão que tomava conta do time e tinha praticamente o dobro de sua idade, decidiu expulsar o jogadorzinho que tantas e quantos vinha fazendo.
– Sai de campo! Disse Heraldo.
A resposta só não surpreendeu a todos porque o geniozinho daquele half em miniatura era bem conhecido entre os garotos do Mangueira. Mas um desconhecido que passasse ficaria espantado com a altivez e arrogância do mindinho diante do grande: – Não saio!
Sai-não-sai, Heraldo não quis levar a discussão muito longe, para não ver a sua autoridade ferida; depois de algum bate-boca arrastou o pequeno pelo campo, encostou-se num dos moirões que o rodeavam e, como o menino ainda resistisse muito, manteve-o seguro com um pé sobre o seu pescoço, enquanto dirigia o resto do treino. A rebeldia do menino ia aumentando o dramático da cena, até provocar a reação de Oscar, outro dos irmãos, que, mais velho que o menor, mais moço que o maior, foi defender aquele, brigando com este.
Heleno de Freitas nascido em 1920 em São João Nepomuceno, filho de Oscar de Freitas, e que tinha oito filhos.
Heleno foi até o posto 4 e ingressou no time de Neném Prancha, conhecido Filósofo do Futebol, de quem se tornou amigo. Heleno ia concluir Direito na UERJ. Nunca advogou por que estava conquistado pelo futebol.
Heleno iniciou no Fluminense, na linha de half. Carlos Magno, treinador mangueiro então no Fluminense, viu na volúpia de vitória, que caracterizava o futebol de Heleno de Freitas desde o garoto de uma vocação de atacante. E Heleno passou por sugestão do uruguaio, a ser centroavante, posição que nunca mais deixaria em sua carreira e na qual se consagraria.
Heleno, de coração era desde garoto um botafoguense de quatro costados. Por isso é que ele passou a ser um jogador mais alegre quando integrou-se definitivamente no alvinegro, no início da década de 70. Não que o Botafogo só entrasse aí em sua vida. Heleno passou pela curiosa experiência de jogar ao mesmo tempo no Botafogo e no Fluminense. A situação de briga entre as duas entidades permitiu isso, e Heleno ficou nos dois clubes, pois eram de ligas diferentes, não jogando entre si; o Fluminense adotara o profissionalismo, enquanto o Botafogo continuava fiel aos renitentes seguidores do amadorismo. Depois, com a fama de bom centroavante, Heleno transportou-se de arma e bagagem para o Botafogo, regularizada a situação política do futebol carioca.
O Botafogo era alguma coisa diferente em sua vida, era o seu clube. A turma de Neném Prancha era ligada a este clube. De 40 a 47 a carreira de Heleno só foi ascensão, passou de craque a craque-ídolo, era a grande vedete da equipe, ele era agora cartas nacional. Na seleção chegou ao auge em 1945, no Sul-Americano no Chile. Ele fez 6 gols nesta competição, foi o artilheiro e o grande cartaz. Ao chegar a sua consagração, chegava também ao início do fim de Heleno de Freitas.
A sífilis, que liquidou o homem e o jogador, começava a minar o sistema nervoso. Atingindo a glória por ter figurado como mais absoluto sucesso ao lado de Zizinho, Jair e Ademir, o Queixada. Heleno apareceu para a torcida em 1945 como indisciplinado, irascível, mal comportado. A maioria não o perdoava, não lhe negando o aplauso na hora exata, não lhe poupava também a vaia quando seus nervos o dominavam. Ninguém nunca chegou a compreender que Heleno não era mais um caso normal. Não era por aquilo que hoje se chamaria máscara, que Heleno se revoltava contra uma jogada mal feita de seus companheiros, não era para aparecer que ele não continha uma discussão com o juiz diante de uma marcação errada. Daí nasceu o drama que marcou a carreira de Heleno em dois extremos. Um temperamento como o dele não podia mesmo contentar-se com meios-termos: foi Deus e o diabo. Deus dos estádios e dele mesmo, demônio. Deus no trato com a bola e demônio no trato com os homens. Para a torcida foi ao mesmo tempo as duas coisas, personagem fantástico, metade Deus, metade demônio.
Se desde menino ele só gostava das coisas bem feitas, só admitia uma jogada executada com perfeição, agora tinha nisso uma exigência sagrada, e de outro lado não admitia brincadeiras nem injustiça. A jogada tinha de ser perfeita, nunca enfeitada demais, sobretudo se isso representasse prejuízo para a equipe, aí continuava, trabalhando em primeiro lugar a volúpia da vitória que sempre lhe marcou a carreira, porque ele desempenhava seu papel com amor.
Heleno levou esse sentimento a essas reações às culminâncias. Esquecia-se que era um seu amigo que errava, se ele errava, para com ele brigar quase às cegas. Mas muitas vezes corria em si, depois, entendia-se com o amigo, voltava às boas com ele. Caso típico deu-se uma vez com Tovar, que era grande amigo de Heleno e por ele respeitado, por ser craque. Mas Tover às vezes enfeitava um pouco a jogada. Numa partida entre Botafogo x Atlético, Tovar perdeu um gol feito por enfeitar a jogada. Tratava-se de um amistoso, mas Heleno, o amadorista, não havia diferença entre amistoso ou jogo valendo ponto. Ficou como fora de si. Investiu sobre Tover aos berros na frente dos colegas. Tovar já estava acostumado com estes comportamentos.
Também, se um fizesse seria lindo – disse Tovar, e riu, cativando Heleno com aquilo. Heleno então o abraçou e riu, riram juntos, a fera a pique de avançar de poucos segundos antes, transformou-se num menino alegre nos braços do amigo que perdeu o gol. Heleno perseguira a vitória como um louco. Esse caso, um só em meio a tantos outros semelhantes, serve como um resumo de todos eles, porque em todos esteve sempre o Heleno-nervoso, o Heleno-menino, o Heleno-artista.
De 45 a 47, da consagração definitiva ao auge de sua glória e de seu drama, esses foram os três maiores anos da carreira de Heleno. Os maiores e os últimos, praticamente, no Brasil. Seus companheiros do Botafogo, jogadores, dirigentes, todo o pessoal do clube compreenderam que alguma coisa de errado havia com Heleno.
Temperamental – dizia a torcida, diziam os jornais. Alguma coisa mais que temperamental entreviam, sem conhecer totalmente a história.
Gilda, um filme que tomou conta da cidade em 1946. Rita Hayworth deveu depois a ele mais da metade da sua imensa popularidade mundial, que lhe rendeu casamentos fautosos e fortunas. Para Heleno, o filme renderia o apelido que só serviria para aumentar seu drama. Rita desempenhava com sensualidade o papel-título que correspondia a uma mulher temperamental e voluntariosa. A aproximação caiu como uma luva para Heleno, no espírito malicioso do carioca. E um apelido a mão, era muito mais fácil mexer com o temperamental Heleno nos estádios pequenos da cidade, cujo futebol, na sua pré-Maracanã, apresentava uma imensa intimidade entre jogadores e público. Os estádios miúdos serviram, por isso, para aprofundar muito mais o buraco que se cavava entre Heleno e o seu público. Atiçando-lhe o nervosismo a cada deslize do gênio de Heleno – Gilda! Gilda! Gilda! – O público o levava à loucura e aos poucos ia incompatibilizando-o também com os companheiros, técnico, dirigentes, clube, juízes.
Ah! mas azar do público que o vaiava, sorte do Botafogo, se aquilo o apanhava em momento de vitória do seu clube. A raiva de Heleno o levava a fazer mais e mais gols, desses que ganharam hoje o nome mesmo de gol de raiva. Fora de si, sua única saída era a busca desesperada das redes.
Se o time estivesse perdendo, a história era diferente. Heleno ficava como que prostrado e a reação do público não o levava senão ao extremo oposto, ao antifutebol.
Heleno relutava pela falta de coragem de afastar-se da família. Se por um lado era um espírito boêmio, tinha também, muito do homem de família. Gostava de ficar horas à toa numa conversa descontraída e sem compromisso. Muitas vezes, quando voltava da praia, passava em casa de uma de suas irmãs e sentava-se ao lado dela num longo bate papo. Falavam da infância e inocentes casos primeiros. Sempre que ele chegava de viagens internacionais. Trazia discos: boleros, tangos da Argentina, bons sambas. Ele gostava de coisas perfeitas como as jogadas dentro de campo. Também guardava bobagens como caixa de fósforos, coleção de bugigangas, canetas, isqueiros, colecionava também moedas estrangeiras de todos os países, valiosas ou não. Ao morrer, só em moeda de ouro Heleno tinha mais de um quilo. Notas estrangeiras, novas, seu cuidado maior era com as moedas. Tudo tinha que ser perfeito como as jogadas de futebol. Gostava de cinema, shows, cassinos e boates, dançava muito e bem. Com o casamento fracassado.
Heleno de Freitas jogou uma só vez no Maracanã. Esse jogo ficou como um símbolo: com o advento do Maracanã. Desapareceram os representantes do profissionalismo romântico que Heleno dignificou quando no Botafogo.
Délio Neves é aquele técnico. Ainda teve muita paciência. Na época, Heleno já bem doente, perdera o senso das coisas. O internamento era necessário, era preciso descobrir totalmente as causas de tudo aquilo e só com tratamento longo.
Heleno foi colocado num sanatório e a família dirigiu-se a direção da casa de saúde pedindo que fosse radicalmente proibida a presença de jornalistas com objetivos profissionais, junto a Heleno. Bastasse ao público a imagem antiga de Heleno correndo entre as quatro linhas de um campo de futebol, brigando pela bola fazendo seus gols com gana, fazendo seus gols com arte. Dando dignidade especial a camisa do Botafogo e da Seleção Brasileira.
Bastava a imagem antiga de Heleno boêmio, do Heleno elegante, do craque-advogado, do craque-galã, do rebelde, do inteligente, do brilhante Heleno de Freitas. Solitário, Heleno foi se consumindo. Morreu naquele mundo, longe de seu público, dos jornalistas, longe de sua família, dia 08/11/1959. Seu corpo foi para São João Nepomuceno. Hoje é nome de uma rua tranquila – bem diferente de sua vida, que desemboca na estação. Humilde estaçãozinha da província, de onde o trem de ferro o levou para a conquista do mundo grande e onde o mesmo trem de ferro o devolveu, no amargo mundo da solidão.
Dicionário do Futebol Brasileiro
Cartola – Denominação entre hostil e irônica, aplicada aos dirigentes de clubes e entidades.
Cartolagem– Grupo de cartolas, os cartolas.
Catimba– Conjunto de recursos pouco esportivos, mas de punição difícil, para enervar o adversário ou tumultuar o jogo (fazer cera, simular contusão, esboçar reclamações).
Bibliografia
Gigantes do Futebol Brasileiro. a. João Máximo e Marcos Castros.
Eduardo Pimentel
Técnico de Futebol