NILTON SANTOS A ENCICLOPÉDIA
Havia terminado o primeiro tempo de uma partida que Botafogo e River Plate disputavam no México, por um daqueles pentagonais de princípio de ano, quando Nestor Rossi ficou muito impressionado com o aspecto do seu companheiro Jairo: uniforme sujo de lama, camisa molhada de suor, cabelos desgrenhados, camisa meias arriadas, fisionomia abatida, tudo por causa dos dribles que lhe aplicara, Garrinha pela lateral da área. No vestiário, Nestor Rossi ficou pensando no que poderia dizer a Jairo para devolver-lhe o fôlego, o ânimo, a coragem de voltar a medir-se com Garrincha no segundo tempo.
Depois, já no campo, chamou o companheiro num canto:
– Você está vendo aquele jogador ali?
Jairo pôs os olhos no zagueiro do Botafogo, num tipo alto, forte, de uniforme limpo, meias lá em cima, tranquilo como si só, agora a partida fosse começar. Enquanto Jairo olhava, Nestor Rossi prosseguiu:
– Chama-se Nilton Santos e é beque esquerdo como você. Pois vá lá perto, passe a mão nas pernas dele, que o seu jogo logo melhora. Vá, ande, que o futebol de todos os beques do mundo está ali naquelas pernas.
O episódio, que Armando Nogueira conta no livro Drama e Glória dos Bicampeões, pode parecer absurdo se lembrarmos como os argentinos são econômicos quando se trata de elogiar um brasileiro. Pode parecer absurdo, ainda, se um dia vimos jogar Nestor Rossi, dono de um futebol extraordinário e um dos maiores centromédios do mundo, em todas as épocas. Mas nada tem de absurdo e chega a ser simples fato de rotina, se guardarmos apenas que Nilton Santos, o mais perfeito jogador de defesa que o Brasil conhecer, é o seu principal personagem.
Contar a história de Nilton Santos é tão difícil quanto dá uma exata dimensão dos últimos vinte anos do futebol brasileiro, desde os últimos tempos de Leônidas da Silva ao apogeu de Pelé, que são também os vinte anos de futebol de Nilton Santos. É contar, ao mesmo tempo, a história de quatro Copas do Mundo e de tudo o que aconteceu dentro e fora do campo, entre uma e outra. É falar um pouco de cada um dos períodos que alguém já chamou de infância, adolescência e maturidade do futebol no Brasil. E fazer, ainda, um estudo profundo de todos os estilos de zagueiro que se conhece, do nosso primeiro beque de escora, abrindo um capítulo especial para Domingos da Guia e passando pelos marcadores, apoiadores, para se chegar, então, ao estilo que ele não criou mas aperfeiçoou. É contar a história de um beque frustrado e temporão, que o amar à bola e a força de vontade de transformarem em bicampeão mundial. E muito mais.
Mas isto não é a história, e sim um pouco de história de Nilton Santos.
Uma das coisas que difere Nilton Santos dos outros é a época em que ele começou a jogar futebol. Pelo menos o futebol sério, em campo de verdade, onze de cada lado, todo mundo de chuteira. Na Ilha do Governador, onde ele nasceu a 16 de maio de 1925, a pelada sempre foi um vício. A pelada e a praia. Natural, portanto, que se entregasse às duas coisas com entusiasmo. Não se encontra, porém, fora do entusiasmo, qualquer prenúncio de craque naquela infância passada ao lado dos irmãos e dos pais, Pedro e Joselia dos Santos.
Não era ele o primeiro a ser escolhido no par ou impar, nem era ele o responsável pela escolha. Quando muito dava-se por satisfeito por não ganhar o meio fio. E o meio fio, na linguagem carioca da pelada de rua, já era um sinônimo de cerca.
Mas o perigo do meio fio, Nilton Santos correu apenas no princípio, no tempo de escola pública e das calçadas curtas. Nilton aos 16 anos só queria jogar na frente, de atacante, driblando os beques, marcando gols. Se concordava em ficar na defesa, era só para não discutir com o capitão do time. Começava o jogo e logo ia avançando até ficar onde queria. Caso mesmo criava quando alguém se atrevia a escalá-lo de goleiro. Aquela era uma posição destinada aos que nada sabiam fazer com os pés e ele, bom na embaixada, no corte, no drible, não se sujeitaria ao gol.
Seu irmão e os amigos acreditavam no seu futebol e quando ele saiu da Aeronáutica lhe escolheram a procurar um time profissional, quem sabe poderia conseguir um contrato. Para ele tentar um contrato era muito difícil.
Num reencontro com o major da Aeronáutica, Honório, que Nilton Santos mudou de ideia. O major Honório conhecia o pessoal do Botafogo, amigo do diretor Carlito Rocha. O Botafogo era um grande clube. A preferência é para os juvenis, os primeiros.
Depois de algum tempo Nilton Santos pediu para jogar na frente, era sua vocação. Ele disse ao Zezé Moreira: – Eu nunca joguei de defesa, eu queria uma oportunidade na frente. Carlito Rocha já achava que ele era um grande beque, dos melhores da cidade. Nilton Santos depois de Domingos da Guia, dez anos ele não deu mais rebatidas e passou a jogar com categoria, indo a frente.
Flávio Costa conversando com Nilton Santos:
– De quem é essa chuteira, Nilton Santos?
– Minha seu Flávio.
– Você por acaso sabe para que posição foi convocado?
– Sei seu Flávio: para beque direito.
– Pois saiba desde já que beque do meu time só usa chuteira de bico duro.
-É o hábito, seu Flávio, com bico duro eu não sei matar uma bola, controlar, dar um drible, nem passe. Fico que nem um poste, duro também.
– Olhe, Nilton Santos, é bom você ir aprendendo que beque pra ser bom não precisa fazer nada disso. Basta saber marcar e rebater, mandar a bola pra frente, do jeito que ela vier. Deixe o bico macio para quem joga no ataque e peça ao Chico outras chuteiras pra você.
No Chile, em 1962, Nilton Santos recolhe a bola nas redes e repete.
Didi, na final de Estocolmo, em 1958. Leva-a debaixo do braço até o centro do campo, num gesto de confiança que vai animar os companheiros para a arrancada do gol de Amarildo – gol que incendeia definitivamente o time.
Aos 37 anos de Nilton Santos, a golpes de velocidade e força física. A competência de Nilton Santos não se conta pelos anos de vida, mas pela sobriedade com que desarma um ponta, pela delicadeza do passe, pela eficiência com que defendia uma área.
Enquanto a vitória enlouquece o vestiário, Nilton Santos o corpo e o espírito; só o rosto de fora da banheira, soprando a fumaça da água esperta que corre renovada, em cinco banheiros.
– Hoje eu sou o jogador mais feliz do mundo; eu sou o homem mais realizado do mundo, trinta e sete anos, quinze de futebol e bicampeão do mundo. Nilton Santos tem os olhos em lágrimas.
Passei vinte e sete dias aqui no Chile, sofrendo como ninguém. Eu precisava ganhar essa Copa para poder despir, com saudades, a camisa da seleção.
Nilton Santos nunca dormiu em paz na concentração de El Retiro.
Antes do jogo, Nilton Santos percebera que Didi estava nervoso, pensando, na certa, no show que daria contra a Espanha. Na boca do túnel de Sansalito, aguardando o momento de entrar em campo, Nilton Santos lhe disse: – Olha crioulo, eu estou com a impressão de que tu vais jogar uma merda hoje, contra esses gringos.
– Por que?
– Porque você só está pensando em dar baile neles pro Di Stefano ver.
Em campo, Didi foi mil vezes xingado por Nilton Santos, sempre que ele teimava em passar a bola entre as pernas de Peiró:
-Joga sério, crioulo mascarado! Deixa a finta pra quando a gente estiver ganhando de quatro, aí eu juro que vou fazer finta contigo – porque eu também sei fazer finta.
Carlito Rocha, o Profeta do Botafogo.
A encarnação da mais impressionante profecia do futebol brasileiro, quando em 1948, antes de seu primeiro treino no Botafogo ouviu de Carlito Rocha:
– Você chegou aqui, ontem, dizendo que é meia esquerda, mas meia esquerda você não é não. Você é beque e, como beque, vai ser campeão carioca, campeão brasileiro, campeão sul-americano e campeão mundial.
Hoje, Nilton Santos é o jogador mais condicionado do futebol brasileiro: aos troféus de campeonatos regionais, nacionais e internacionais, ele acrescenta, e agora bicampeão mundial.
Como conquistou o bicampeonato do mundo?
– Sofrendo, sofrendo muito – responde Nilton Santos – A gente sofre tanto que até mesmo o Garrincha não se controla. Ontem de noite conversando comigo sobre a final de hoje, ele me disse: “Santos, dessa vez eu parei com Copa do Mundo; perdendo ou ganhando, chega de responsabilidade”. No jato de volta ao Brasil, Nilton Santos não é o mesmo de sempre, fala como uma criança, repete a todo momento que é o homem mais feliz do mundo e até parece que perdeu o medo de avião.
Há cerca de um mês, neste mesmo avião, nesta mesma rota, Nilton Santos amargava a angústia de não saber com que armas se conquista uma Copa do Mundo. Sabia, quando muito, que sem coração e sem cabeça, ninguém será capaz de vencer no futebol.
Hoje eu tenho a impressão de que Copa se ganha com as pernas, com a cabeça, com o coração, com a alma, com os nervos; sofrendo fora do campo e vibrando dentro dele. Copa do Mundo se ganha com fé, mas também com medo de perdê-la. E, sobretudo, diz Nilton Santos, com os olhos vermelhos de chorar baixinho.
– Copa do Mundo ganha quem ama o futebol, Copa do Mundo, ganha quem tem mais intimidade com a bola. E nós somos amigos de infância de todas as bolas do mundo.
NILTON SANTOS
Zagueiro, lateral esquerdo, natural do Estado da Guanabara, nasceu em 16 de maio de 1925, filho de Pedro L. Santos e Josélia Santos, com 1,80m de altura e 78 quilos. Começou a jogar em 1948 pelo Botafogo de Futebol e Regatas, pertencendo ainda hoje ao mesmo clube carioca. Foi campeão carioca de 1948, 1957 e 1961 pelo Botafogo. Campeão Sul-Americano de 1949, Vice-Campeão Sul-Americano de 1959. Campeão Brasileiro, 1950 (carioca), Campeão Pan-Americano de 1952; Campeão do Mundo em 1958 e Bicampeão do Mundo em 1962, Campeão do Torneio Rio-São Paulo de 1962. Perfil de campo: estilo clássico; técnica irrepreensível no passe, com faces externo e interno dos pés, os dois pés; perfeita colocação em campo e raro sentido de cobertura, explicam a eternidade do seu futebol.
DICIONÁRIO DO FUTEBOL BRASILEIRO
Catimbar– Fazer catimba.
Catimbeiro– Diz-se do jogador que faz catimba.
Cavadinha– Lance no qual um jogador corre até a linha de fundo e centra a bola no interior da área, alto, na cabeça de um companheiro.
Cavalo– Jogador violento, duro.
Cavar – Conseguir uma vantagem com grande esforço: um gol cavado; obter um benefício por meio de simulação, cavar um pênalti.
Cego– Mau jogador, que não vê a bola; Árbitro incompetente, que erra nas marcações ou não percebe as faltas cometidas.
Celeiro– Clube que revela muitos jogadores de categoria.
Celeste– Designação da seleção nacional do Uruguai, devido à cor azul de sua camisa.
Bibliografia
Gigantes do Futebol Brasileiro a.a. Marcos de Castro e João Máximo.
Eduardo Pimentel
Técnico de Futebol