Sinto-me à vontade para discorrer, nestas linhas sobre Pelé, cuja vida admirável valorizou-se tanto por fora como por dentro. Acompanho-o desde o nascedouro e a forma, ou a partir de quando ele entrou na Seleção Brasileira, em 1958, com 17 anos de idade. Vicente Feola, o treinador que o convocou esteve altamente inspirado ao abrir-lhe crédito de confiança sem limite. Então, Pelé era um desconhecido. Tive a fortuna de ser seu companheiro naquela seleção de 1958.
O modo exemplar como que o excepcional jogador se houve diante do campeonato mundial do referido ano, conferiu ao então campeão-menino honras de ídolo das multidões. Daí por diante, seu nome e sua projeção cresceram.
A promessa do que ele parecia ser converteu-se numa radiosa realidade. Ninguém sabe de um mínimo arranhão que possa macular o perfil moral ou técnico desse companheiro, tanto mais modesto quanto maior o orgulho que temos em considerá-lo irmão. Nunca me ocorreu o mais leve reparo que pudesse envolver o Pelé, durante o tempo já longo de nossa convivência e de nossa estima.
Voltamos a nos reencontrar em 1962. Já era um Rei, com direito a todas as reverências. Então, no Chile, durante a disputa da copa, ninguém teria dúvida a respeito de sua atuação. Mas a sorte parece haver brigado com ele. Logo em sua segunda exibição, a equipe brasileira não pôde mais contar com a sua espera do concurso. Os extremos de seu entusiasmo viril acabaram dando-lhe uma recompensa amarga: o estaleiro. Nossa convivência amorteceu-se, pois abandonei o futebol três anos depois, em 1965, para dedicar-me à carreira de técnico no comando do time juvenil do Botafogo.
Eis que mais adiante, veio a copa de 1970. Voltei a encontrar Pelé, já então em circunstâncias diferentes e até certo ponto ingratas. Bem, senti que o extraordinário jogador carregava o moral abatido em face das campanhas de desmoralização atribuídas ao meu antecessor no comando técnico da Seleção.
Muito se falava e se escrevia sobre o Pelé com o fim de deprimi-lo, e isso me deixava perplexo. Algumas vezes, eu me perguntava a ti aonde a verdade poderia ir; tanto maior era a minha dúvida quanto certo que desconhecia as reais condições físicas do jogador.
Meu primeiro novo contato com Pelé ocorreu em certo treino matutino, realizado no campo do Itanhangá. Chamei-o ali mesmo, sem preocupar-me com a atenção indiscreta dos que estavam perto: “Pelé, eu quero falar com você”. Sua resposta foi tranquila: “É muito bom que isso aconteça, pois também desejo falar com você”. Ele próprio deu início ao jogo verbal: “Zagalo, já fomos companheiros de copa do mundo e, por isso, quero deixá-lo totalmente à vontade. Sou igual a qualquer outro jogador, o problema de ficar no banco dos reservas não me afeta. Se você entender que não tenho condições para entrar no time, ou se você possuir outro jogador melhor para a minha posição, fique à vontade e faça o que bem entender. Só uma coisa lhe peço: seja honesto”.
Bem depreendi, através das palavras do Pelé, os ressentimentos que lhe foram provocados por certas declarações do técnico anterior. As declarações deixaram entrever que meu antecessor punha nos ombros do jogador a responsabilidade resultante de alguns problemas causadores de sua possível saída da seleção em treinamento. Ao sentir as mágoas do Pelé, compreendi que poderia ir mais longe e convocar seus brios: “É, Pelé, dizem que você está míope, velho, e que não tem a mínima condição para integrar a Seleção!” Fiquei muito aliviado por ter podido revelar uma dúvida sem molestar o ânimo do jogador.
Meu alívio decorreu também do fato de ter ouvido palavras serenas, nascidas na consciência limpa do ídolo. Sempre pude entender-me com os jogadores muito bem, sem ranço na voz ou ácido no sentimento. Eis o que muito facilitou minha atuação. Pensando claro e procurando externar meu pensamento sem azedume, mas com serena firmeza, fácil tornou-se nossa harmonia. Nunca foi do meu hábito cultivar juízos ocultos e, por isto, sendo como sou, todos podem ser como são, no trato da reciprocidade.
Assim muitos problemas poderão ser evitados; bastar-nos-á abolir provocações tanto mais perversas quanto maior seu poder sibilino. A naturalidade e a espontaneidade não fazem mal a ninguém. Vieram os treinos em sequência, no período penoso da aferição ou do cotejo. Minha única instrução ao Pelé quanto ao seu comportamento dentro do campo consistiu em bem pouco: Sempre que o nosso ataque perder a bola, seja o primeiro a combater o ataque do adversário. Esta recomendação se fazia necessária em face da polêmica suscitada em torno da posição em que o grande craque deveria ser escalado. Uns queriam que ele atuasse no meio-campo, outros, mais extremado, iam a ponto de proclamar que Pelé só poderia jogar de líbero. Em cada cabeça uma sentença. No caso, as opções eram poucas, não obstante, radicais.
Mas não me parecia importante uma definição, em face dessa alternativa. Mesmo antes de assumir o comando da nossa Seleção, eu já me familiarizara com os interiores do quadro, acompanhando todos os seus jogos; sentia o desempenho de Pelé. Em toda a sua carreira, era constante a prova que exibia: jogava, vindo de trás, apanhando jogo depois, lá na frente, encenava brincadeiras dramáticas. Minha vivência não era de um dia; acumulou-se através de anos, ou a partir de quando passei a compreender as manobras do corpo e da alma do Pelé. Tive-o comigo lado a lado, e meu faro não é de todo escasso.
Durante a fase do treinamento, aqui no Brasil, muita coisa observei calado. Algumas diziam respeito ao próprio Pelé. Várias observações conservo só para mim. O bom-senso fez-me testar no comportamento do famoso ídolo, durante o referido treinamento, uma verdade que agora posso registrar:
(Continua)
Eduardo Pimentel
Técnico de Futebol


















