Ao revê-lo, não encontrei mais o homem generoso, que premiava os jogadores por um gol, dava mundos e fundos pela conquista de um título. Estava diante de mim o dono do meu passe, o senhor de meu destino. Eu, Almir Morais Albuquerque, não era uma pessoa, mas uma coisa sobre a qual ele, J. Armando, se julgava com poderes de vida e morte. Ele ainda era o homem forte do Boca, quis saber o que se passava.
Aqui na Itália não dá mais. Continuo com problemas no joelho, vou voltar para o Brasil a fim de me tratar – expliquei. Ele perdeu a cordialidade que eu havia conhecido em Buenos Aires. Era outro homem, muito diferente, capaz deste ultimato, que me expôs com muita firmeza: Ou você joga na Itália ou não joga em nenhum outro clube do mundo. Talvez ele pensasse que ia me atemorizar com isso. Fiquei irritado, respondi com muita segurança, pois já tinha tomado à decisão de parar com o futebol para sempre, se ele insistisse em me enquadrar, como pretendia. Repliquei no mesmo tom: Olha, seu Armando, eu não jogo nem no Boca Juniors, nem no Milan, nem no Gênova. Só jogo no Brasil.
Por que você não joga?
Porque eu não quero, não me adapto ao clima da Itália.
Ele repetiu a ameaça: Então, se não joga na Itália, você não joga em time nenhum do mundo. Eu não deixo.
Eu ri diante da sensação de poder que ele exibia.
Então está bom seu Armando, aceito a sua opinião. Mas vou embora para o Brasil.
Ele reagiu como se fosse não apenas o dono do meu passe, mas também, da minha vida: – Você não vai embora para lugar nenhum.
Aí, eu ri diante do desportismo dele. Tirei a passagem do bolso, coloquei-a na mão e encerrei o assunto: Vou embora sim, seu Armando. Só depende de mim.
Aquele incidente com seu J. Armando, de quem não guardei raiva (não sei também se ele ficou com raiva de mim, se é que ainda se lembra de mais um jogador que passou por suas mãos, me deixou depois a impressão de que a aventura no Boca Juniors só me tinha trazido problemas, apesar do bom dinheirinho que ganhei ao ir para lá. Foi no Boca Juniors que sofri uma contusão que quase me abrevia a carreira; foram o médico e o enfermeiro do Boca que permitiram que eu chegasse a romper meniscos, ligamentos, simplesmente porque eles não admitiam que estivesse contundido, queriam que eu jogasse.
Esse comportamento do médico e do enfermeiro levou seu Vicente Feola a duvidar de mim. O seu Feola que era um homem bom e que se tinha revelado meu amigo. Num amistoso entre o Boca Juniors e o Flamengo aqui no Maracanã, eu disse a seu Feola que não tinha condições de jogar, porque estava machucado; ele preferiu acreditar no médico, que sustentava o contrário. Durante o jogo, senti que minha perna ficava completamente inchada; mal conseguia caminhar. Decidi então sair do campo: como nesse tempo não havia maca, fui pulando com um pé só até a boca do túnel.
– Volta pro campo. Almir, isso não é nada, disse seu Feola.
– Seu Feola, o senhor me conhece, sabe que eu não sou de fazer fita. Se o senhor duvida, vamos ao vestiário conversar.
Desci a escada, segui para o vestiário me apoiando na parede do túnel do Maracanã. Lá embaixo, tirei as chuteiras e as meias, mostrei-lhe o estado em que se encontrava meu joelho, levantei o calção para que ele visse como a minha coxa estava inchada.
Seu Feola ficou penalizado. Ele é um homem que se sensibiliza com o problema dos jogadores, acabou colocando a mão no meu ombro e procurou me confortar: – É, Almir, você tem razão. Mas não se impressionou, não que o problema não fosse grave. Isso aconteceu apenas comigo. É uma rotina do futebol o massacre dos jogadores pelos médicos, que fazem de tudo para ganhar os jogos a qualquer preço; eles também recebem bicho, querem é resolver o problema do time naquele dia do jogo, sem se importar muito com o resto. Dida, que foi artilheiro do Flamengo e é meu chapinha, contou-me que jogou muitas vezes com injeção em ligamentos. Ainda recentemente, num encontro em minha casa, ele relembrava isso.
– Uma vez contou – fui decidir um título como aspirante pelo Flamengo, contra o Botafogo, depois de tomar injeção em ligamento estuporado. Durante o jogo inteiro não toquei na bola, mas dei a sorte de fazer o gol da vitória. Depois do jogo, os caras até me gozaram: “Está vendo como você não estava doente”? No dia seguinte, a radiografia comprovou que o ligamento estava estourado. Foi à custa de injeções que consegui entrar no jogo.
Dida me contava também às conversas que teve com Garrincha, um dos jogadores mais sacrificados por essa prática dos nossos clubes. Sou amigo do Mané Garrincha, que me acha “gente boa”, mas o Dida tem mais intimidade com ele, porque os dois participaram da campanha da Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Pois Garrincha jogou à base de injeções, porque lhe pediam para jogar ou o obrigavam a isso. Algumas vezes foram chamados de bandidos ou de marginais os caras que durante anos e anos fizeram isso com Mané Garrincha?
O caso é que no Santos eu ia poder recomeçar tudo e principalmente consolidar a minha recuperação, que avançou assim que mudei de clima ao retornar ao Brasil. A minha situação no Santos era tranquila, porque eu era reserva de Pelé (no Santos, nessa época, cada jogador tinha um reserva certo, porque o time jogava muito, precisava ter dois elencos para o primeiro quadro). Eu não tinha oportunidade de jogar, nem queria: para entrar era preciso que Pelé se machucasse. Deus me livre, torci para que isso não acontecesse nunca. Primeiro, porque eu gostava demais do negão, queria para ele o bem que desejo aos meus dois filhos. Segundo, porque Pelé era a segurança, era o nosso bicho. Para jogar de centroavante também não dava, porque Coutinho tinha um reserva certo, o Toninho, que depois se tornou o artilheiro do time, jogando no lugar do Couto, e mais tarde se transferiu para o São Paulo Futebol Clube.
No Santos, eu começava também a reorganizar minha vidinha. Eu já tinha um filho, o Almirzito. Depois que voltei a São Paulo, nasceu minha garota, Adriana. Com o dinheiro do Santos fui pagando as coisas que estava devendo aqui no Brasil, porque minha ida para a Argentina e para a Itália desajustou tudo. Só com a minha chegada é que as coisas voltaram a entrar nos eixos. Eu morava num apartamento muito grande no Gonzaga, não tinha preocupação: com Pelé jogando faturávamos o bicho tranquilamente.
O Santos tinha uma visão muito profissionalista do futebol, que era dirigido por seu Nicolau Moran. Então, não havia problemas: seu Moran valorizava o jogador, a gente tinha tudo, nem precisava pedir. Ele gostava muito de mim, não quis eu deixasse o Santos quando o Flamengo manifestou interesse em me contratar, no começo de 1965. Mas ele compreendeu as minhas razões, acabou me liberando. No Flamengo eu iria ser titular, teria mais oportunidades que no Santos, onde era reserva. Reserva de Pelé, o que é uma honra, mas reserva.
Bibliografia: Almir Albuquerque, eu e o futebol.
(Continua na próxima semana)
Eduardo Pimentel
Técnico de Futebol
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