FUTEBOL: ARTE E CIÊNCIA - O GRANDE PECADO DE JOÃO SALDANHA II - SóEsporte
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FUTEBOL: ARTE E CIÊNCIA – O GRANDE PECADO DE JOÃO SALDANHA II

Pelé poupou-se, ao máximo, em todas as provas anteriores ao início do campeonato mundial, por que por estar prevenido quanto ao acúmulo das contusões que sofreu nos anteriores campeonatos do mesmo nível. Criou-se até mesmo a lenda de que ele não era jogador de seleção, mas de time. Já aos 17 anos, em 1958, como recordei, não logrou participar de vários jogos, na Suécia, por se ter contundido como integrante da seleção brasileira.

O fato repetir-se-ia depois. Em 1962, logo na segunda partida, no Chile, voltou a contundir-se e não jogou mais. Em 1966, na Inglaterra, dos três prélios de que o Brasil participou, só conseguiu atuar numa partida e na metade de outra. Fomos para a Copa de 1970 com o Pelé consciente de que estava saturado de bola. Ele pertence ao Santos; este e o Botafogo são os clubes que mais excursionam, que mais jogou pelo Brasil e dentro, e pelo mundo afora. Onde joga o Pelé, cresce a faina da caçada. Sua fama humilha os adversários, que não sossegam enquanto não o martirizam.

Não só a fama, o mérito intrínseco do campeão. A bola nos seus pés torna-se um perigo e por isto, os adversários procuram tomá-la de assalto, mesmo que o jogador sofra lesões físicas. O prestígio do Pelé desperta no ânimo dos rivais a ambição de abatê-lo; uma verdadeira perseguição o envolve em campo. A caça intensifica-se à medida que o jogador a desconserta, tanta a capacidade que tem para desvencilhar-se com proezas que deixam os espectadores de boca aberta. Coitado do técnico de um time quando tenha de enfrentar outro em que esteja o Pelé! É natural que o extraordinário craque estude maneiras próprias para defender o corpo, com certas manobras que muito custam à sua presença de espírito.

Tudo ele dava de si, na fase do treinamento, indiferente ao que pudesse acontecer. Então, na hora da onça beber água, o esgotamento se punha em sua vizinhança.

Daí as facilidades com que se predispunha as lesões corporais. Mas o tempo engrandecido pela experiência ensinou-lhe a contar até dez, antes de embrenhar-se em jogadas perigosas. Hoje, Pelé sabe ir às jogadas perigosas com carta de seguro; sabe imunizar-se contra as emboscadas, sem prejuízo dos lances fulminantes. Hoje, o amadurecimento deu-lhe a sabedoria da técnica inigualável, apurando ainda mais a grandeza do seu jogo.

Veio 1970. Senti que o jogador se poupava. Não me intimidei, não dei importância a isso. A prova está em que jamais retirei Pelé de campo por insuficiência física. A única vez que me predispus a substitui-lo, fato que não se concretizou, foi por mim anunciada com a antecedência de uma semana. Mas ocorreu que o Tostão se contundiu e isso me fez jogar fora a ideia. Devo dizer que a substituição imaginada não envolveu qualquer alteração no meu juízo a respeito da performance do Pelé. Ao contrário, já havia experimentado e sabia do seu valor; tinha era que julgar o estado de outros jogadores, para saber com que prata poderia contar.

Meu juízo sobre aquele que se tornou ídolo das multidões estava selado; não sofreria revisão. Ele estava bem, apesar da campanha dos derrotistas. Empregava-se a fundo nos exercícios físicos, poupando-se nos treinos e nos jogos prévios. Poupava-se a ponto de não se arriscar a uma corrida funda; jogava em corrida de trote os noventa minutos de cada partida preparatória. Eu guardava comigo a segura convicção de que Pelé estava no auge; quando lhe fosse exigida a descarga plena do jogo, tudo ele daria em rendimento total. Lembro-me de que, antes da partida contra a Áustria, no Estádio Mario Filho, reuni a turma para puxar pelos brios de todos, sobretudo os do Pelé: “Ninguém acredita na gente; nós vamos jogar contra uma escola europeia. Já me sinto satisfeito em face da última atuação contra o Paraguai, mas, temos que nos empregar a fundo no jogo de hoje. Será nossa última partida, aqui, no Brasil, e teremos que dar satisfação ao público quanto ao bom estado do time. Hoje, faremos com que toda a gente acredite em nossa seleção; acredite no Pelé e em todos vocês”. Minha conversa não acabou aí. Mas aí pressenti que o quadro brasileiro entraria em campo ferido em seu amor-próprio. Bastava-me o ar resolutivo que encorajava o espírito dos jogadores.

O quadro brasileiro vinha sofrendo sórdida campanha de desmoralização por parte de certa imprensa. Chamei a atenção dos nossos jogadores para isto: “O público deveria compreender a miséria da campanha, através da prova real, que consistia na própria exibição convincente da seleção. Se o público está aí, no estádio, não temos o dever de recompensá-lo com uma ótima partida. O público veio incentivar-nos e não tem nada com a sordidez da campanha. Vamos, minha gente: ao mesmo tempo em que premiamos o público, desmoralizaremos os detratores”.

Tornou-se evidente que, no período anterior do treinamento, quando a direção dos jogadores convocados era outra, muito se desejou atingir a reputação profissional do Pelé. Mas aquele clima pérfido, por incrível que pareça, provocou num tiro saído pela culatra. O estado que a campanha gerou no espírito do extraordinário jogador foi propício à sua recuperação psicológica. Valeu-me como um trunfo para a catequese que me cumpria intensificar. Todas as vezes em que eu me empenhava com o desejo de ainda mais valorizar a atuação do Pelé, valia-me de uma agulhada para aprofundar na ferida; Olhe, Pelé, dizem que você está míope e sem condições físicas; dizem que seu futebol acabou. Mas sei que isso é mentira. Você tem que desmascarar a mentira, mostrando ao público o quanto vale.

Na Seleção Brasileira de 1970 muito se caracterizou e estendeu o ambiente de amizade e respeito, reinante entre o técnico e todos os seus comandados. Parte da imprensa negativa não cansou de inventar a existência de um triunvirato responsável pela escalação do time: Pelé, Gerson e Carlos Alberto. Mentira. Chefe que se preza não deixa nunca de ouvir seus subordinados. Se eles são seus amigos. Todo o estado maior da delegação brasileira tinha por semana um dia de reunião coletiva, os assuntos eram tratados visando-se ao interesse comum do futebol nacional. Muitas vezes, os assuntos eram resolvidos por votação. Numa forma democrática geradora da corresponsabilidade.

Mario Jorge Lobo Zagalo, o maior currículo de futebol do mundo, só a imprensa não o reconhece.

Eduardo Pimentel

Técnico de Futebol

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