FUTEBOL: ARTE E CIÊNCIA - O MOÇO PRETO, GENTIL CARDOSO - SóEsporte
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FUTEBOL: ARTE E CIÊNCIA – O MOÇO PRETO, GENTIL CARDOSO

Na América do Sul, especialmente no Brasil, o WM permanece praticamente
desconhecido até meados dos anos 30. Prevalecia o esquema 2:3;5 bruto e os treinadores
seguiam privilegiando a disciplina e a puxadas sessões de ginásticas que fizeram a glória
de Ramon Platero.
Seu mais obediente aluno foi Luis Vinhaes, um modesto funcionário público
que fez sucesso incorporando aos métodos de Platero o dom da oratória na qual pregava o
incondicional amor à camisa e pela pátria. Campeão carioca pelo São Cristóvão em 1926,
foi preterido para dirigir a seleção brasileira na Copa do Mundo de 1930, por força de
politicagem, mas teve seu valor reconhecido no ano seguinte, quando passou a treinar a
equipe nacional.
Vinhaes viveu seu grande momento no dia 4 de dezembro de 1932, quando
a seleção conquistou a Copa Rio Branco derrotando o Uruguai, então campeão do
Planeta por 2×1, no Estádio Centenário de Montevidéu. Reza a lenda que o homem fez
sua preleção brandindo em lágrimas a bandeira brasileira no vestiário. Mas o fato é que,
embora essencialmente disciplinador, falava a linguagem do jogador – havia sido um deles,
além de possuir olho clínico. Foi Vinhaes que lançou Domingos da Guia e Leônidas da
Silva, ainda muito jovens, na seleção.
O primeiro esboço do WM no Brasil, justiça seja feita, foi praticado por Gentil
Alves Cardoso. Pernambucano do Recife, onde nasceu em 5 de setembro de 1901, Gentil
foi um centro médio medíocre e não demorou a tornar-se treinador do clube em que jogou,
o Syrio e Libanez.
Chefe de máquinas da Marinha Mercante, Gentil teve a rara oportunidade de
viajar mundo afora, e foi a bordo do encouraçado Minas Gerais que chegou à Inglaterra,
em 1929. Nas horas de folga, corria para os campos de futebol, onde pôde observar a
revolução tática de Champman e seus discípulos.
Ao voltar para o Brasil, começou a aplicar os sistemas de jogo que havia
aprendido na Europa. Primeiro no Syrio, em 1930. No ano seguinte, o clube de Colônia
desistiu de disputar a Primeira Divisão do Campeonato Carioca, e Gentil transferiu-se para
o Bonsucesso. O time chegou em sétimo, atrás apenas dos seis grandes, terminando com o
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ataque mais positivo – 58 gols – e com uma vitória histórica de 6 a 2 sobre o Flamengo.
Mas Gentil demorou a ser reconhecido. Embora militar e engenheiro formado,
foi vítima do preconceito dos que não lhe perdoavam o fato de ser “negro” – um crioulo
xistoso −, na visão elitista dos dirigentes, e de estar sempre defendendo os interesses dos
jogadores, algo absolutamente inaceitável para a cartolagem da época. “Trata-se de um
papagaio falador”, replicavam.
Gentil lançou um esboço do WM no Bomsucesso de 1931, mas ninguém deu
bola. A escalação do time, cá entre nós, também não ajudava – Medonho, Cozinheiro e
Heitor; Lola, Oto e Nico; Catita, Rapadura, Gradim, Leônidas da Silva e Prego.
Gentil logo passou a chamar a si próprio de “moço preto dos pequenos”
numa evidente alusão ao comportamento racista da época, e a criar dezenas de conceitos
que ajudaram, ao lado de sua competência, a tirá-lo do anonimato. No quadro-negro que
invariavelmente mandava instalar nos vestiários, lançava as frases que fizeram história
no futebol brasileiro: “A vitória não exige explicações, a derrota não merece desculpas, o
empate não significa superioridade”; “Quem desloca recebe, quem pede tem preferência”;
“Mulher é sempre bom depois do esforço realizado. Antes disso, estraga os pulmões”; “É
obrigação do técnico enxergar o que se passa na alma dos jogadores. Ele tem que ser guia e
fazedor de milagres. Mestre e curandeiro. Dar vista aos cegos e muletas aos aleijados”; “A
bola é feita de couro, o couro é tirado da vaca e a vaca só gosta de grama. Portanto, bola
não voa, é feita para rolar rasteira, quanto mais rasteira melhor” no que não deixa de ter
razão.
Foi Gentil também que criou o termo “cartola” como sinônimo de dirigente.
Ainda discutia-se a adoção do profissionalismo no Brasil, em 1932. “Cartola” era quem
detinha o poder nos terreiros de macumba.
Apesar de tudo, foi técnico de quatro grandes clubes do Rio, ganhando títulos
cariocas em dois deles: no Fluminense, em 1946, cumprindo a célebre promessa – “deem-
me Ademir que lhes darei o campeonato”, e no Vasco, em 1952. Uma conquista heroica,
pois passou quase todo o segundo turno sendo obrigado a suportar a pressão dos chamados
“cardeais” cruzmaltinos que exigiam a volta de Flávio Costa. Flávio, para Gentil, era o
seu oposto: “o moço branco dos grandes”. Após o último jogo – Vasco 1 x 0 Olaria, 21 de
janeiro de 1953 – exclamou, enquanto era ovacionado pela torcida: “Estou com as massas.
E as massas derrubam qualquer governo”. No dia seguinte, o presidente Cyro Aranha o
mandou embora.
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Passou pelo Flamengo, entre setembro de 1949 e julho de 1950. Ao ser
demitido, regenerou-se. “Na outra encarnação devo ter sido um marajá muito perdulário,
muito degenerado e muito seduzido pela cobiça. Agora estou pagando pelo que fiz”,
afirmou. Ao deixar o Botafogo, em 1954, mais filosofia. “Gandhi, Cristo, Comte e Vargas
foram a razão de ser da inteligência, do amor e da pureza. Fico com Deus no coração,
mas não me afasto de nenhum deles”, garantiu. Em 1964, dirigindo a Portuguesa, Gentil
prometeu, antes de um jogo contra o Vasco, que o time da Ilha do Governador ganharia.
“Vai dar zebra”. E deu. A Portuguesa venceu por 2 a 1 e a frase entrou para o próprio
cotidiano da vida brasileira.
Gentil cansou de ter seu nome desprezado, quando indicado por gente da
mídia, para assumir o comando da seleção brasileira. Na última delas, em 1958, também
preferiu evitar problema, limitando-se a um comentário: “Meu consolo é que o grande Ruy
Barbosa nunca foi levado a sério. Era o maior, mas quando se candidatava à presidência da
República não lhe davam a menor pelota”, disse.
Gentil lançou não só as bases do WM no Brasil, como foi o primeiro a aplicar
por estas bandas um manual de regras capaz de organizar os departamentos de futebol
dos clubes, naqueles anos 30, fartos de intolerância e preconceitos, criou, por exemplo, o
Tribunal do Atleta, para que os jogadores pudessem, em reuniões internas, discutir seus
próprios erros. Elogia, entre os comandados, um juiz, um promotor, um advogado de
defesa e um corpo de jurados. As decisões, não cabiam qualquer tipo de apelação.
Vítima de úlcera gástrica, o velho marinheiro morreu no Rio de Janeiro, em 8
de setembro de 1970.
Bibliografia
Banho de bola. Roberto Assat.
Eduardo Pimentel
Técnico de Futebol
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