Se tivesse dependido de mim, eu teria ficado na Itália, porque senti quanto o jogador profissional era prestigiado lá. Naquele ano de 1962, havia muitos brasileiros no futebol italiano: Vinicius, Dino da Costa, Germano e, o mais bem sucedido de todos, Mazzola, que se tornou um ídolo como Altafini, seu sobrenome de família. Eram todos atacantes, que ganhavam os tubos para fazer aquilo que os italianos valorizavam demais, como até hoje: gols.
Como eu também era atacante poderia fazer uma bela carreira na Itália, se o joelho não estivesse arrebentado por tantas injeções que me deram no Boca Juniors, um ano a fio. Mazzola, que tem mais ou menos a minha idade (deve estar com 35 anos), até hoje se encontra em boa situação na Itália: é um dos maiores artilheiros em atividade no país, com quase trezentos gols. Para mim não deu, infelizmente.
Na Itália os jogadores são tratados muito bem e, naquela época, os estrangeiros estavam com tudo por lá. Além dos brasileiros, havia jogadores de outros países, como a Suécia e a Argentina, todos muito bem de situação, porque sabiam fazer gols, ou proporcionar gols a seus companheiros.
Para os italianos, o jogador de futebol – calcio, como dizem lá – é tão importante quanto um artista de cinema: basta estar no auge da carreira, para ser tratado com carinho por todo o mundo – a torcida, os dirigentes, a imprensa. Nenhum brasileiro que voltou do futebol italiano veio com queixas de lá.
Ao contrário da Argentina, onde o negócio era muito largado, na Itália o profissional de futebol é um empregado como outro qualquer, no que se refere a responsabilidade. Ele tem de entrar no clube de manhã e sair à tarde, e assina o livro de ponto tanto na entrada como na saída. Mesmo que não possa treinar, por uma contusão ou outro motivo qualquer, tem de ir ao clube, ficar lá uma hora ou duas.
O regime de concentração é muito moderado: os jogadores vão para uma região de montanha, com hospedagem muito boa, comem muito bem, bebem o seu vinho, como a coisa mais natural do mundo. A concentração não é como aqui no Brasil que parece uma prisão: um bando de homens enfurnados entre quatro paredes, coçando-se e afastados da família. Muitos jogadores, principalmente os mais responsáveis, mais amadurecidos, se sentem como uns prisioneiros. A concentração demorada irrita; fica aquele bando de marmanjos uns olhando para os outros, sem nada para fazer, numa morrinha terrível.
No Gênova, fui bem tratado até que apareceu um técnico que não gostava de preto, um tal de Gay. Comigo não havia problemas: sou branco, não seria perseguido. Mas nessa época estava lá o Germano, aquele que depois se casou com a tal condessinha Giovana Augusta. Germano, irmão de Fio Maravilha era um craque: tinha um drible rápido, desconcertante, batia dois ou três na corrida, e cruzava para a área na medida, com violência. Um belo jogador. Mas para Gay ele tinha um defeito: era preto.
Um dia, Germano sabe disso, Gay começou a xingá-lo na minha frente. Eu achei aquilo o fim da picada com o Germano ausente, Gay começou a dizer cobras e lagartos dele. Tomei a defesa de Germano: Olha aí, ô cara, você tem de dizer isso na frente dele, não na minha. Se pensa que eu vou contar isso ao Germano, você está enganado. Se você é homem, diz isso cara-a-cara ao rapaz.
Gay ficou surpreso com a minha reação, naturalmente pensou que eu iria tomar o partido de um branco contra um preto.
A partir daí, passou a me olhar de banda, desconfiado, tentando descobrir o que se passava na minha cuca. Eu quase não falava, nunca fui muito de falar, a não ser com amigos do peito. Gay ficou intrigado. Ele tinha uma espécie de espião no time, o Orcheta, que lhe dava o serviço de tudo o que ocorria. Orcheta era o capitão do time, mas confundia a função com a de puxa-saco, o que aliás é comum em muitos clubes. Eu o apelidei de “corneta”, tratava-o assim porque ele ficou sem moral.
Como é, Corneta, quais são as ordens do homem?
Orcheta ria, fingia que levava a coisa na brincadeira; não passava recibo. Naturalmente ia avisar a Gay.
Na véspera de um jogo contra a Internazionale de Milão, eu senti uma fisgada na perna, disse que não tinha condições de jogar. Gay aproveitou o pretexto para dizer com franqueza o que pensava, pôs para fora todo o seu despeito: Eu não aguento mais trabalhar com jogadores brasileiros. São uns manhosos, vivem inventando coisinhas para tirar o corpo fora. É evidente, claro, que você não tem nada. Está é com manha.
Sem perder a cabeça, fiz-lhe um desafio: Então você faz o seguinte: chama um médico e manda me examinar. Se o médico disser que tenho condição de jogo, eu entro em campo.
Ele não topou o desafio, encerrou o assunto. Depois do incidente, vi que nada mais tinha a fazer na Itália. Como não podia voltar para a Fiorentina, ia acabar brigando com Gay, teria de continuar suportando o frio e jogar sem condições, com o joelho ainda meio bombardeado. Resolvi então pedir rescisão do contrato e retornar ao Brasil.
Da temporada italiana, apesar de tudo, eu tinha conseguido alguma coisa: fiz muitos amigos, como o técnico Valcareggi, e ainda ganhei 15.000 dólares. Com esse dinheiro, comprei uma loja em São Paulo: dei a entrada e fiquei pagando o resto com o dinheiro que ganhei no Santos. Nessa época o jogador de futebol não tinha muita opção para aplicar seu dinheiro: ou comprava apartamento ou montava uma loja qualquer. Numa hipótese ou noutra, não era b om negócio, principalmente a loja porque o jogador de futebol não é comerciante, acaba entrando pelo cano.
Foi graças ao zagueiro Mauro Ramos de Oliveira que voltei ao Brasil, contratado pelo Santos. Numa excursão do Santos a Itália, Mauro, bicampeão do mundo em 1962, no Chile, quis saber minha situação lá.
Expliquei que já não aguentava aquele frio, estava vendo a hora em que, com aquele problema do joelho, ia acabar parando de vez, antes do tempo. Sei que Mauro deu um toque lá nos homens do Santos, principalmente seu Nicolau Moran, e acabei retornando. Sou grato a Mauro Ramos por sua intervenção, e procurei sempre demonstrar isso tratando-o como um bom companheiro, depois que passei a jogar no Santos.
A transa mais difícil não era com o Santos, que afinal deu 50.000 dólares ao Boca Juniors por meu passe (Não sei se pagou em dinheiro ou se com a receita de dois amistosos que fez lá na Argentina, mas a forma não me preocupava: o fato é que eu tinha retornado ao Brasil, e para jogar no time de Pelé. Difícil mesmo foi romper com o Boca Juniors. Ao saber que eu tinha pedido rescisão de contrato ao Gênova, J. Armando marcou um encontro comigo em Milão, fui lá falar com ele.
(Continua na próxima semana)
Bibliografia
Eu e o futebol, Almir Albuquerque, O Pernambuquinho.
Eduardo Pimentel
Técnico de Futebol
