O futebol se apresenta como muito mais que um esporte no Brasil e no mundo. Ele se tornou uma paixão coletiva que mobiliza multidões, constrói identidades e desperta emoções intensas. Mas por trás dessa aparente celebração esportiva, esconde-se uma realidade cruel que raramente ocupa os debates públicos: nos dias de jogos, os índices de violência doméstica disparam de forma alarmante.
É o que diz uma pesquisa realizada no Reino Unido e no Brasil, que comprova que os resultados esportivos – especialmente as derrotas – funcionam como verdadeiros estopins para agressões contra mulheres. É fundamental deixar claro: o problema nunca foi a bola rolando no gramado, mas sim o que esse fenômeno social revela sobre as estruturas patriarcais que sustentam nossa sociedade.
OS NÚMEROS QUE NÃO PODEMOS IGNORAR
Na Inglaterra, um estudo minucioso da Universidade de Lancaster analisou os índices de violência doméstica durante três Copas do Mundo (2002, 2006 e 2010) e revelou dados estarrecedores. Quando a seleção inglesa vence ou empata, os casos de violência aumentam 26%. Nos dias de derrota, esse número salta para assustadores 38%.
Em 2014, a ONG Tender (Reino Unido) trouxe esse debate à tona com uma campanha impactante, cujo slogan ecoa até hoje: “Ninguém queria que a Inglaterra vencesse mais do que as mulheres.” Os pesquisadores apontam que esse aumento está diretamente relacionado a dois fatores que se retroalimentam: o consumo excessivo de álcool e a frustração masculina diante dos resultados esportivos. São esses os elementos que, combinados com uma cultura machista enraizada, fazem com que muitos homens direcionem sua raiva contra as mulheres mais próximas – companheiras, esposas, namoradas ou familiares.
No Brasil, a realidade não é diferente. Um estudo encomendado pelo Instituto Avon em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) analisou dados de jogos do Brasileirão entre 2015 e 2018 em cinco grandes cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador. Os resultados confirmam o que muitas mulheres já sabiam na prática: houve um aumento de 23,7% nas denúncias de violência contra mulheres nos dias de jogos. Esse índice se torna ainda mais preocupante quando o time joga fora de casa, alcançando picos alarmantes.
Os dados revelam ainda que em 80% dos casos registrados, os agressores eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas, sendo as mulheres entre 30 e 49 anos as mais afetadas por essa violência que se intensifica com os jogos de futebol.
O cenário geral da violência contra mulheres no Brasil, conforme revelado pelo Conselho Nacional de Justiça, mostra que apenas nos primeiros cinco meses de 2024 foram registrados 318.514 casos de violência doméstica, 56.958 estupros e 5.263 feminicídios. Esses números não param de crescer: em 2021 foram 83 mil denúncias; em 2022, 88 mil; e em 2023 atingimos a marca alarmante de 115 mil casos registrados.
DESMONTANDO A ENGRENAGEM DA VIOLÊNCIA
É crucial entender que o futebol não é o causador da violência doméstica, mas sim um amplificador de comportamentos violentos já existentes na sociedade. A cultura machista, que associa o esporte a uma falsa ideia de “masculinidade legítima”, reforça estereótipos perversos que naturalizam a agressividade e a dominação masculina sobre as mulheres.
As derrotas esportivas funcionam como gatilhos para explosões de raiva e frustração que, combinadas com o consumo de álcool – outro elemento constantemente presente no universo futebolístico -, criam o cenário perfeito para a violência doméstica. Mas talvez o fator mais perverso seja justamente a normalização social desse ciclo de agressões.
Muitos agressores já possuem histórico de comportamento violento, mas a sociedade insiste em relativizar essas atitudes, depositando nas mulheres a responsabilidade absurda de “suportar”, “compreender” ou até mesmo “modificar” esses homens violentos. Como bem pontua a antropóloga Beatriz Accioly, coordenadora de pesquisa do Instituto Avon: “o jogo catalisa desigualdades de poder, interagindo com valores ligados à hostilidade e frustração”.
O JOGO QUE PRECISAMOS JOGAR
Os dados não deixam margem para dúvidas: o futebol não cria, mas potencializa um problema estrutural que nossa sociedade insiste em não enfrentar de forma adequada. Para mudar esse jogo perverso, precisamos de campanhas permanentes de conscientização que vão além dos períodos de Copa do Mundo, mas alcançar campeonatos nacionais, regionais e estaduais.
É urgente a implementação de políticas públicas específicas que atuem de forma preventiva nos dias de jogos, protegendo as mulheres que sabem, por experiência própria, que o apito final do árbitro muitas vezes marca o início de seu calvário doméstico. O envolvimento do universo futebolístico nessa luta é fundamental – clubes, torcidas organizadas e federações precisam assumir sua parcela de responsabilidade no combate ao machismo que mata milhares de mulheres todos os anos.
Como bem sintetiza a pesquisa, “o problema não é o futebol, mas o que ele revela sobre nossa sociedade”. Revela nossa tolerância com a violência contra as mulheres, nossa naturalização do machismo e nossa dificuldade em romper com ciclos de agressão que se repetem geração após geração.
Enquanto o esporte mais popular do planeta continuar sendo palco para a manifestação do pior do patriarcado, precisaremos lembrar: nenhum gol, nenhum título, nenhuma conquista esportiva justifica uma única mulher agredida. O verdadeiro jogo que precisamos vencer é esse.
Marcia Marques
